O pedinte
Publicado em 01/01/2017 por Gustavo Dutra
— Não sou bicho. Eu sou uma pessoa direita, séria. Aquela senhora, por quem passei na frente do Pet Shop, me disse que valho menos que o cãozinho dela. Isso não é verdade. Disse que sou bicho. Isso também não é verdade, de forma alguma. Sou um ser humano, por favor, tente entender, não sou bicho. Quando a parei na rua para explicar-lhe tudo, me olhava atravessado, como se eu fosse culpado antes mesmo de cometer um crime. Mas só queria ter com ela, contar-lhe tudo que vivi a fim de lhe pedir alguns tostões. Afinal, pedir dinheiro assim na rua, não gosto, porque parece que vou gastá-lo com bebida, drogas, com algo que não tem valor ou até mesmo que não daria um investimento de volta, como por exemplo comprar balas para vender no sinal. Quando abri a boca para começar, logo no início da primeira frase, já chamou-me de bicho nojento e acusou-me de a estar perturbando. Falou em tom consideravelmente alto, pedindo ajuda aos do redor para que me contivessem. Não sou bicho. Sei disso, não posso sê-lo, pois sinto tudo muito confuso dentro de mim, tal qual um humano sente. Já bicho não sente nada, não deve sentir. É claro que já cometi deslizes na vida, mas fomos todos jovens um dia, não é mesmo? Já fui preso, mais de uma vez. Lá também me chamavam de bicho. Gostaria de frisar que ser preso a primeira vez é um pouco mais difícil, é verdade, exige um pouco mais de vontade por parte deles para te manter na prisão. Dado que você já foi preso a primeira vez, é como se toda a sua vida ficasse condenada, como se fosse motivo suficiente para te prender de novo, inclusive sem provas, sem julgamento. Já fui preso, mas peço que não me julguem sem antes me ouvir. Antes que se assustem, não ando armado, nem mesmo com uma faca. Isso tudo aprendi com o tempo, pois em uma das vezes que fui preso, levava comigo uma faca de cozinha. Facas são ótimas ferramentas para quem vive na rua, como eu vivia naquela época. Além de um utensílio para o dia-a-dia, poderia usar como defesa, como na vez em que tentaram roubar meu cobertor. Fui preso, a primeira vez, por assassinato. Dito assim, até parece algo grave, mas foi merecido. Nunca fiz mal a ninguém, com exceção de poucas pessoas que mereceram. Não tive outra opção. Já fazia algum tempo que desconfiava que minha mulher estava me traindo com outro. Se ela tivesse se separado de mim, nada disso teria acontecido e eu provavelmente não estaria aqui falando a vocês tudo que estou aqui, de fato, falando, pois não teria história para ser contada. Provavelmente, ainda estaria no emprego, que era simples, mas era digno. Antes disso tudo acontecer, nunca havia sido chamado de bicho. Mas calmem, que a história tem um porquê. Voltando a ela, a propósito, queria registrar de novo: nunca tive desses amores possessivos, nunca enxerguei minha mulher como pertence, nunca pensei que ela fosse minha. Pelo contrário, sempre depositei muita confiança na relação que tínhamos, dando-lhe abertura para sair com as amigas e amigos quando estava indisposto ou, até mesmo, quando estava disposto, mas não iria me encaixar no grupo de amigas que iriam gargalhar e contar coisas das quais não me interessavam. Nesses casos, ela costumava sair só. E eu a incentivava. Nunca fui de criar briga, pois achava até saudável à relação, inclusive. Mas houve um cara que se passou com minha mulher certa noite. Foi o que confessou uma das amigas dela antes de matá-la. Minha desconfiança se concretizou e, em um ataque de fúria, a condenei por ser cúmplice. Não é correto ver algo errado e fazer de conta que não viu nada. É preciso ser íntegro. Meu pai sempre falava que homens precisavam ser íntegros e ter sua dignidade indiscutível. Agi nessa direção. Pois, em um acesso de raiva e loucura, não precisou muita ameaça às amigas para saber onde o amante dela vivia. Na mesma noite, ainda atordoado e furioso, fui lá, munido de coisa muito mais letal que uma faca de cozinha. Pulei o muro, arrombei a porta, entrei e atirei. O objetivo não era educá-lo ou dar lições de moral, por isso decidi não trocar palavras com ele, que morreu sem saber quem eu era e por que o havia condenado à morte. Me senti recomposto depois disso. A fúria havia passado e eu já começava a raciocinar novamente. Por mais que tenha me esforçado muito e repetido várias vezes, o júri não acreditou na minha inocência e me decretaram, todos, culpado. Mas sou um homem sério e íntegro. Aceitei a pena e já paguei por ela. Quando sai da prisão já não tinha mais ninguém a quem recorrer. Meu pai morreu jovem e minha mãe, religiosa, disse, ainda no dia do julgamento, que não queria mais olhar na minha cara. Fui morar na rua, onde fui preso mais algumas vezes, muitas sem motivos mesmo, apenas por já ter sido preso anteriormente. Um senhor a quem fui pedir dinheiro certa vez, me aconselhou que procurasse o pastor da igreja que frequentava. Acho que os pastores têm esse desejo, de querer ajudar aqueles que estão no fundo poço. Não sei se querem que eu tenha sucesso na vida para pagar cada vez dízimos mais altos ou se são genuinamente bondosos. Mas o importante é que o pastor me deu essa roupa com que pude comparecer na entrevista de emprego. Infelizmente, não conseguiu achar um lugar para eu dormir. Durmo agora em albergues, junto de gente que também é chamada de bicho. Alguns, provavelmente até sejam, mas eu, eu não sou bicho. Tenho força de vontade, conforme tentei demonstrar para todos naquela sala de dinâmica de grupo. Desculpe se me soo repetitivo, é que já me chamaram tanto de bicho, que às vezes, só pelo olhar das pessoas, já imagino que estejam, mentalmente, me insultando. A propósito, quanto à vaga, tirei segundo lugar. Penso que um bicho não teria ido tão bem, não é? Depois de dito toda minha história, gostaria de pedir a ajuda de vocês. Não quero fazer uma nhaca maior, me ajudem, por favor. Preciso tirar cópias de alguns documentos. Aqui está minha carteira de trabalho; e aqui, uma certidão de nascimento; e aqui, outros documentos que me pediram. Podem conferir, digo-lhes somente a verdade. Preciso de dinheiro para autenticar as assinaturas. Falta pouco para conseguir o emprego. Sem emprego e dormindo em albergues, não vou muito longe. A prisão era mais aconchegante, mesmo sendo chamado de bicho. Tentem entender… Já me pagaram almoço e levo, ainda, sobras comigo. É quarenta reais o valor do qual necessito. Já possuo quatro reais. Por favor, ninguém está me ajudando e estou chegando à beira do desespero. Estou tão próximo de ter de volta minha vida digna mas, ao mesmo tempo, parece tão impossível arranjar quarenta reais. A todo lugar que vou, me ignoram e me menosprezam. Sinto muito medo, pois, conforme narrei, na fúria e no desespero, aí sim, viro bicho.