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A anedota do martelo um mito fundador da classe média?

Publicado em 11/03/2021 por

Se você nasceu na classe média, tenho certeza que, em algum momento, ouviu a anedota do martelo. Ou metáfora do martelo, como preferir. São diversas as versões[1][2][3], sempre adaptadas para exemplificar algum conceito adicional.

Em resumo, é a história de um capitão cuja embarcação não está funcionando corretamente. Como um barco parado no porto é sinal de prejuízo financeiro, o capitão chama um técnico para consertá-lo. A visita custaria U$1.000. Depois de um dia de trabalho o técnico desiste, não sabendo dizer o que causava o problema.

O capitão, então, decide chamar um outro profissional, agora um engenheiro, mais especializado e, claro, que cobraria mais caro. O engenheiro estudou por três dias o maquinário, mas também não soube como resolvê-lo. Mesmo assim, cobra U$10.000 por sua visita.

Já se passaram quatro dias e o barco continuava atracado no porto. O prejuízo não parava de aumentar. Era necessário uma atitude mais enérgica: chamaria o profissional que o construiu. Esse, quando chegou, após algumas horas de avaliação, com um martelo pequeno, deu três batidas em uma válvula discreta, quase escondida. Após alguns testes, deram o barco como consertado.

O construtor do navio, então, fala o seu preço: U$1.000.000. O capitão fica espantado, achando o montante um absurdo. Como pode um conserto de três marteladinhas custar 1 milhão de dólares? O construtor responde: “pelas marteladas eu cobrei 1 dólar; os U$999,999 restantes foram por saber onde dar as marteladas”.

Eu escutei essa história pelo menos umas três vezes na vida, em situações diferentes, mas sempre com um mesmo intuito: provar que o conhecimento vale mais que o trabalho braçal.

A fundação da classe média

Tenho me interessado pelas contradições e os problemas da classe média, e percebo que a propagação desse “mito” é agente estruturante da divisão de classes.

No livro “ A classe média no espelho ”, o autor Jessé Souza — o mesmo autor de “ A elite do atraso ” — defende que a classe média brasileira surge a partir dos imigrantes e filhos de donos de terra, pois estes se diferenciaram através do conhecimento.

Como o Brasil não criou nenhuma medida de indenização, a abolição da escravatura apenas criou uma massa de pessoas desassistidas e sem conhecimento utilitarista, do qual o Capital se aproveita. Nesse cenário, poderíamos dizer que o berço da desigualdade brasileira é um passado mal resolvido com a escravidão.

E se o que difere a classe média da trabalhadora é o acesso à educação naquelas disciplinas cujo capital prevalece, esse comportamento se persiste sistematicamente através da sucateamento das escolas e universidades públicas.

O resultado disso é uma classe média ocupando os cargos de gestão e estratégia, enquanto a classe trabalhadora fica responsável pelo trabalho braçal e à exposição aos riscos de vida, como no caso de mineiros, garimpeiros, empregadas domésticas — durante a pandemia — e agricultores — pelo menos os que lidam com agrotóxico ou tabaco —, por exemplo.

A partir dessas explicações, alguns pensamentos passaram a me incomodar:

  • Do livro: “O aspecto crucial dos últimos duzentos anos de lutas dos trabalhadores foi precisamente o esforço pelo reconhecimento do valor social do seu trabalho, e não apenas o trabalho de seus patrões”. Se gestão não consegue nada sem a execução, e se a execução sem gestão não chega a lugar nenhum, por que elas não se equivalem? Afinal, são co-dependentes.
  • Cotas e bolsas não são suficientes. Como o próprio autor fala, a educação da classe média não é apenas feita pela matrícula num colégio ou numa faculdade. Os pais e mães possuem recursos para dar, aos filhos, tempo livre e dedicação aos estudos. Portanto, para revolucionar, o acesso é apenas uma parte do trabalho. Serão necessárias mais medidas públicas.
  • Esse sentimento de que nós valemos mais é justamente o que a elite brasileira quer que pensemos. Esse é o mecanismo pelo qual nos coopta, fazendo com que exerçamos cargos estratégicos em seus negócios. Receberemos um salário alto — se comparado ao da classe trabalhadora —, mas daremos lucros ainda maiores. Então, nós nos compararemos com os trabalhadores e nos acharemos parte da elite; e ela rirá de nossa inocência.

Todos os elementos formadores da classe média estão na anedota:

  • A elite representada por uma embarcação; em algumas versões, inclusive, carregada de ouro. Que alegoria seria melhor para mostrar a forma extrativista e exploradora com a qual a elite faz dinheiro desde 1500?
  • A classe média presta serviços especializados, com conhecimento específico e utilitário. Quanto maior o nível de especialização, mais caro o serviço.
  • A classe trabalhadora desdenhada. A martelada custou apenas U$1, enquanto aquele que possui o conhecimento de onde martelar recebe U$999,999.

Acho importante esse movimento. Precisamos entender cada vez mais os mecanismos estruturantes a fim de combatê-los. Essa anedota já não replico mais. Ao menos, não no sentido de perpetuar o louvor ao trabalho sobre o conhecimento.

Ainda quero explorar alguns outros pontos do livro, mas deixarei para outro post.