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Lições de criação poética com Adélia Prado

Publicado em 17/01/2018 por

Recentemente, reassisti à entrevista da Adélia Prado ao programa Roda Viva , disponível no YouTube. Achei tão interessante e agradável, que não me contive na passividade de receptor. Separei, então, algumas frases que me estimularam a comentá-las.

A sua poesia vem da tristeza?

Eu adoro discutir criação poética. Não é a toa que criei o um barco ao mar. A primeira pergunta, abrindo o programa, já toca neste assunto. Perguntada se a tristeza era o que a fazia escrever, igual Vinícius de Morais afirmara - que era da tristeza que nascia os grandes poemas -, responde:

Eu não acho que a tristeza seja o motor da poesia. Uma pessoa não escreve poesia porque é triste ou é alegre. A poesia vem de um outro lugar que inclui a tristeza e a alegria, mas isto não é condição para escrever nenhuma obra. Porque toda obra, 'inda que nascida da triteza, por ser poética ou por ser arte, ela é bela. E a beleza é alegria pura. — Adélia Prado

O que sentimos em face de uma obra de arte sempre é complexo de descrever, mas definir como “o belo” ainda é uma forma muito boa e sustentável. E o belo, em muitos casos, não necessariamente será bonito ou agradável aos olhos ou ao coração. Acredito que este belo venha da decantação, que surge logo em seguida do rebuliço gerado por uma inquietação ou desconforto do contato com a obra de arte.

O contato com o povo alimenta a sua poesia?

A jornalista Josélia Aguiar pergunta se os eventos que a poeta participa alimentam, de alguma forma, ou, pelo fato do deslocamento e da presença nestes consumirem tempo, atrapalha a criação poética. A resposta é sensacional e muito similar a de outros poetas:

O que alimenta minha poesia é o próprio susto e o próprio espanto que eu tenho com a vida. E a vida que eu tenho é só o cotidiano, eu não tenho nada de diferente. [...] É disso que todo poeta fala, do assombro que é existir. [...] É muito perturbador viver se existindo. — Adélia Prado

O Ferreira Gullar afirma a mesmíssima coisa, que escrevia perante o mesmo espanto. É interessante ver essa conexão entre os dois.

Sobre a origem da poesia nela

Eu ainda vou fundar um ramo da filosofia chamado Filosofia da Poesia para investigar esse fenômeno. É interessante ver como a poesia surge em cada poeta de maneira diferente, mas, no fundo, são interpretações individuais sobre os mesmos vetores. É a humanidade e a singularidade - como mencionada pela Adélia - que nos faz diferentes, mas a fonte parece ser a mesma.

Eu acho que as perguntas básicas que geram a filosofia, geram as religiões, também geram a arte: quem eu sou, de onde eu vim e para onde que vou. [...] A filosofia lida com o mesmo material do poeta, do filósofo, do artista, do pintor, do cineasta. Ele está sempre novo, renovado, porque as pessoas são singulares. É muito estranha essa singularidade das pessoas, não se repetem: fazendo as mesmas bobagens e as mesmas maravilhas. — Adélia Prado

Como a religião é um tema muito forte na sua obra, um dos entrevistadores perguntam se ela continuaria a escrever poesia mesmo não sendo religiosa. Esta resposta corrobora com a afirmação anterior e coloca o artista atrás das suas próprias definições de mundo, sendo a obra um produto do ser e não ao contrário.

Se eu fosse atéia ou agnóstica, eu faria poesia do mesmo jeito, porque eu acredito na minha vocação. [...] Mas eu faria outra poesia. Não é a fé que me faz escrever poesia, a fé é constitutiva da minha experiência humana, então necessariamente ela aparece na poesia. [...] É a possoa inteira que produz poesia. Ela é autobiográfica, toda obra. Até ficção científica é autobiográfica, porque o autor escolhe seu tema e isso já é possoal. — Adélia Prado

Ainda acrescentaria que o escritor não só escolhe o tema, como também escolhe a estética e a linguagem, escolhe as veredas da constituição dos personagens e dos cenários, dá forma à mensagem que passa. Neste ponto, toda obra é limitada à visão do autor. Ninguém é capaz de escrever aquilo que não sabe ou que ignora, mas isto é uma limitação da linguagem que podemos discutir em outro momento.

Sobre o rigor

O primeiro editor da Adélia Prado, Pedro Paulo de Sena Madureira , afirmou que não há ninguém mais rigoroso com a própria obra do que ela mesma. Ao se deparar com a pergunta, ela comenta em qual aspecto é, de fato, rigorosa:

Eu quero fazer o melhor, mas o meu rigor é de outra ordem. É de não trair o que eu estou sentindo. Eu detesto enfeite. — Adélia Prado

E mais adiante, comenta:

É como dar um banho em um recém-nascido. O poema vem, cheio de gordura, de sangue, de tudo quanto há. Evado das coisas que aquela emoção está produzindo, mas isso não é arte ainda, é uma coisa bruta. Aí você vai escrever aquilo. É uma fidelidade que é pecado mexer naquilo. Não pode. — Adélia Prado

A metáfora com o banho de um recém-nascido é muito bonita, porque o poema nascido tende a ser tão belo e frágil quanto uma criança. Quando se a lava, não se esfrega de maneira rudimentar, mas de maneira suave a fim de revelar tudo que há debaixo da gordura, do sangue e demais sujeiras.

Quando ela diz mas isso não é arte ainda, é impossível não lembrar do poema de Drummond - a quem tem muita admiração e, segundo a entrevista, já leu tudo -, Procura da poesia, onde diz: “o que pensas e sentes, isso ainda não é poesia” em um contexto muito similar.

O âncora, Augusto Nunes, lê um trecho de prosa escrito pela autora e indaga por que este trecho não se apresenta com forma de poema, já que possui poesia. A resposta é simples e direta: “porque o impsulso era narrativo, era casuístico, era um cachorro latindo”, mas antes responde o seguinte:

Quando eu escrevo prosa que não tem poesia, eu não publico. Não é literatura. O escopo, o objetivo, a finalidade de toda a obra de arte, seja ela poesia, pintura, ..., qualquer coisa, é a poesia. É a linguagem por excelência. — Adélia Prado

Neste contexto, o rigor citado acima se mostra com mais veemência. E sobre a [diferença entre escrever prosa e poesia]({{ site.baseurl }}{% link um-barco-ao-mar/em-alto-mar/_posts/2017-04-25-poesia-vem-da-contemplacao.md %}), faz o seguinte adentro:

Eu não sei como, mas quando vem a coisa eu sei que a laçada é de poesia. Eu sei a diferença entre poesia e prosa. Este material aqui dá um bom texto em prosa; isso aqui é poesia, ela tem uma cara diferente. [...] É mistério. Mistério é bom porque resolve tudo, mas eu acredito nisso. — Adélia Prado

Sobre a pintura ser a parente mais próxima do poema

Quando assisti pela primeira vez, não entendi muito bem. Nesta segunda vez, a reflexão que surgiu desta afirmação foi muito mais profunda.

Toda a vida eu senti que a pintura é a parente mais próxima do poema. Gostaria até de entender e saber explicar porquê. Acho mais que a música. A concretude da pintura e a concretude da palavra... Evidente que a música também, a verdadeira é poesia, mas quando eu falo poesia, poema, é a pintura. Dá uma vontade danada de também pintar. — Adélia Prado

Ao responder esta pergunta, eu lembrei de um poema meu, chamado [Porquê escrevo]({{ site.baseurl }}{% link _introversos/026-porque-escrevo.html %}), onde eu digo que cada poesia é uma mneumônica para um momento. É como se fosse possível reconstituir o que foi sentido em dado momento à partir da leitura do poema.

Nesse sentido, se assemelha muito a um pintura, ou até mesmo uma fotografia, e este último eu adiciono e tomo a responsabilidade disso, já que também conta a história à partir do estático. A música, o teatro e o cinema conduzem o espectador até um determinado local através da projeção de sons e/ou imagens, ao passo que na poesia, na pintura e na fotografia o espectador gera seu próprio caminho até um significado que também está limitado a sua própria experiência humana.

Assim, o movimento da música, do cinema e do teatro, em geral, apresentam um caminho, ao passo que o poema, a pintura e a fotografia apresentam a possibilidade de um caminho que precisa ser desvendado por quem as aprecia. De certa forma, tudo isto está ligado ao [grau de abstração necessário]({{ site.baseurl }}{% link textos/_posts/2016-04-02-correlacionar-e-atribuir-significado.md %}) para absorver a peosia contida em cada um dos ramos da arte.

Sobre a coragem de enviar os originais para serem lidos por poetas e especialistas

Pois Adélia enviou os poemas para Drummond, na condição de descobrir se era mesmo poeta. Havia nela esta incerteza. Esta incerteza existe em todos que começam a escrever, por certo. Muitas vezes precisamos do aval de outros poetas para nos chamarmos assim, caso contrário sempre parecerá pretenção.

A coragem me foi porque eu estava acreditando que aqueles textos tinham uma linguagem, uma dicção minha. Não era parecido com ninguém, eu não estava imitando ninguém. Isso aqui sou eu. Eu tomei coragem porque eu acreditei. — Adélia Prado

Ela, para finalizar este texto, dá uma dica para todos nós: procurar uma linguagem própria é o dever-primeiro do poeta para poder se chamar de tal. Para isso, não há fórmula mágica ou única, cada um precisará encontrar a sua dicção, que seja original e fiel aos seus sentimentos e suas experiências inerentemente humanas.

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