Na prática, a teoria é outra: pandemia e luta de classe
Publicado em 25/05/2020 por Gustavo Dutra
Na prática, a teoria é outra. Ouvi muitas vezes essa frase e, em inúmeros casos, pude comprovar sua assertividade. Ao que observo, a teoria muitas vezes tende a ser dogmática, simplificada e nivelada por baixo.
Nos dias de hoje, enquanto estamos presos em nossas casas — ao menos aqueles que podem e querem, pois sim, há muitos que gostariam e não podem, bem como quem pode e não há cristo que o faça querer —, tenho percebido novamente o poder dessa frase em diversas esferas. E, aproveitando o dia lindo que faz lá fora, neste sábado ocioso, fiz uma pequena lista delas:
- Guedes, durante a reunião ministerial, mostra que a prática é outra em relação à teoria do neoliberalismo: “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos para salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando pequenininhas.”
- A mão invisível do mercado, ao que tudo indica, é a dos lobistas, amigos e empresas financiadoras de campanhas eleitorais (1 e 2 para citar alguns). Ou seja, não há muito de “autorregulação” quando o governo, à partir do próprio Ministro do Meio Ambiente, deseja legislar à favor destes. Os termos usados foram “desregulamentação” e “simplificação”, o que leio como “favorecimento”.
- A democracia, a da teoria, nunca existiu de forma plena no Brasil. Nosso Estado é autoritário de forma estrutural. As instituições mantiveram boa aparência, mas sempre trabalharam em prol do capitalista, ou seja, na manutenção de uma parcela de desemprego, que aumenta a demanda por trabalho e permite salários mais baixos; o extermínio dos mais pobres, indígenas ou quilombolas, que não participam intensamente no consumo desenfreado das metrópoles; o descaso com os idosos, negando uma aposentadoria digna, uma saúde digna, já que não são mais força de trabalho; e por aí vai.
- O Estado Mínimo só funciona em teoria, quando as variáveis são controláveis. Na prática, mostra-se impossível. Não há vantagens — para nós, cidadãos — em tempos de crise, seja gerada por pandemias, escândalos políticos, crises hídricas, crises climáticas, etc.
- A Constituição, na sua integralidade, continua sendo uma teoria cuja prática é outra. Também não enxergo horizontes próximos para que ambos aspectos convirjam.
- A teoria de que existe uma só cultura no Brasil é uma ideia que já deveríamos ter ultrapassado. Por que definir o que é ser brasileiro, se ser brasileiro pode ser tudo isso? Aliás, não estou certo de que haja referência histórica de movimentos nacionalistas que não estejam ligadas a ditaduras. Mas neste caso, chamo a atenção à fala do Ministro da Edução que envolve o trecho ”acabar com esse negócio de povos e privilégios”. Ela é, antes de tudo, genocida. Vale lembrar que, ainda que se refira à modo de vida, língua, vestimenta, ou qualquer outro aspecto sociocultural, o etnocídio é uma forma de genocídio.
Agora, há um fato interessante que se descola dessa lógica. Sempre fui avesso ao termo marxismo. Mais por influência do meio do que por discórdia; até porque nunca havia lido ou me interessado pelo assunto como nos últimos anos.
O grande exemplo é a luta de classe. Burguesia e proletário; opressores e oprimidos; enfim, a nomenclatura que, à primeira vista, se assemelha a vilões vs. mocinhos, numa espécie de dualismo, sempre me incomodou.
Este discurso, também presente na fala de políticos, geram um efeito de “nós” contra “eles”, que ao meu ver, era mais um instrumento de retórica do que a realidade. Esta era a parte que me incomodava. Meu desconforto, entretanto, originava-se no deslocamento, pois eu não me sentia parte de nenhum dos lados. Me assumia numa terceira categoria, uma categoria que não existia. Não me julgava opressor nem oprimido.
Assim, devido aos privilégios por transitar entre a classe média branca — onde as pessoas podem se dar ao luxo de não precisar se importar com política —, demorei à digerí-la.
Hoje, entretanto, a vejo como ponto central para entendimento da situação do Brasil. Inclusive, sendo necessária em diversas esferas e movimentos sociais. Feminismo sem luta classe, por exemplo, continua favorecendo a mulher branca de classe média; indo contra o princípio de igualdade da luta feminista.
Em meio a pandemia, tudo isso ficou mais claro. A necessidade de fortalecer a luta de classe se revelou nítida nas respostas dos empresários ao isolamento social e lockdown. Agora que as elites estão seguras, querem forçar a reabertura do comércio, invertendo a teoria — e mostrando que a prática é outra! —, forçando a produção com pouca demanda.
O ponto de virada para a mudança do meu pensamento foi enxergar-me como trabalhador, oprimido — ainda que não seja tão oprimido devido à estratificação social que me encontro. E aí, diante de tudo isso, quando leio a teoria, chego à conclusão que, quanto a luta de classe, na prática, a teoria é a mesma.