O flamular do pano em Lundu, de Tatiana Nascimento (Padê Editorial)
Publicado em 07/05/2020 por Gustavo Dutra
Em Julho de 2018, como ainda é de costume, scrollava pelo feed do YouTube à procura de algo interessante para ocupar o tempo, quando seleciono uma entrevista da filósofa Djamila Ribeiro. No vídeo, ela e Lázaro Ramos discutem o seu mais recente livro à época, O que é lugar de fala?
Num segundo momento, entra em cena Tatiana Nascimento , até então desconhecida para mim. Além de seu livro, Lundu , e da Padê Editorial, sua editora focada em autoras LBTs e negros, fala sobre seus projetos. Ao responder o que queria dizer para o mundo, afirma:
[quero dizer] coisas muito velhas, na verdade. Coisas que a gente trouxe de bem longe, do outro lado do oceano, e que tem a ver com uma lógica outra de vida, com um tempo outro de mundo, com uma relação diferente de comunidade, de laços, de produção e transmissão de saber. — Tatiana Nascimento
Não sei se na mesma entrevista ou em outra, Tatiana resume todo este texto com um só verbo: “quilombolar-se”. Dizia que nós devíamos nos quilombolar. Esta é uma das características que mais me encantam na poeta: a capacidade de síntese, junto da inventividade e da sonoridade rítmica do seu batuque silábico.
Não tinha como fazer diferente. Comprei o livro e o li poucos dias depois que chegou pelos correios. No processo, troquei alguns emails com a poeta. Enviei um vídeo falando sobre Ernst Gotsh, agrofloresta e permacultura, os relacionando com minha visão de “quilombolar-se”. Ela me retribuiu me apresentando Marsha Hanzi, que tem um sítio em Tucano/BA.
Queria focar, entretanto, para um trecho do primeiro email que enviei, onde eu comento que assisti a entrevista e passo a ela minha percepção:
Fiquei todo arrepiado e tive que comprar o livro. Tua poesia tem um movimento lindo de tecido que flamula em som, apesar do denso relevo da reflexão e na agilidade das imagens. Fiquei muito curioso para ler as outras poesias.
Pois, praticamente 2 anos depois, ainda consulto o livro e encontro esse ritmo que flamula o tecido. Se quiser saber do que falo, declamei “diz/faço qualquer trabalho” n’um barco ao mar.
Lundu, título do livro, é uma dança e canto de origem africana. Acredita-se que tenha vindo principalmente de Angola. Há algumas incertezas quanto à origem. Chegou a ser proibida, por ser considerada lasciva e indecente, e associada ao batuque. Apesar de tudo, os brancos da época se apropriaram dessa cultura. Há mais informações aqui.
De fato, o jogo de palavras nos poemas me faz perceber movimento, como numa dança. O ritmo é tão encorpado que sobrepõe a lógica da gramática. Sapata vira “Sapatá” e pipoca vira “pipocá”, por exemplo, como quem, ao término da pronúncia, levanta a mão e dá uma umbigada — estilo dança espanhola —, que são características da dança.
em seu canto, Sapatá [...] dançarino varíoloco o filho: em seu banho Odoyá [...] doburu seu espírito-milho: venta o manto pipocá
A evolução dos passos, típicos de danças de roda, como que num círculo, contracenando com outros dançarinos, também é nítida:
marcadura queimadura pele borbulha raça impura ferradura mula. A cavalo dado se olha dentadura dentição dente-de-leite ama-de-leite amarelo-azeite
E assim o livro se dá, dançando, pano que flamula. Poemas que “quilombolam-se” à minha estima. Recomendadíssimo.