— Contos

Alceu, o filho do que ri sozinho

Publicado em 28/02/2015 por

Aquele ali descendo a rua se chama Alceu. Sua mãe havia morrido logo após o parto, o que fez com que fosse para a cucuia o que restava do bom senso do pai.

Mas Alceu sempre fora lúcido e muito racional; não deixava que as loucuras do pai o afetasse no seu dia a dia. Cresceu e se desenvolveu até mais que os amigos do colégio, cujos pais tinham dó por Alceu “não ter uma família de verdade.”

Hoje, ele é um cara dito normal — se é que nos tempos de hoje em dia alguém possa ser — que sempre ignorou as loucuras do pai e nunca o levou a sério. Mas houve uma loucura, uma única loucura, a derradeira loucura que ele não pôde fugir: o motivo pelo qual ele se chama Alceu.

Para ser honesto, este Alceu, que agora atravessa a rua indo em direção ao outro lado da calçada, nunca soube o motivo e é provável que nunca saiba, porque esta é a grande loucura do pai: tem o motivo só pra si e ri, internamente, toda vez que escuta alguém chamar seu filho pelo nome.

Tudo aconteceu em um sábado de manhã, quando estava indo da zona norte para a zona sul, num trajeto que cruzava a cidade. Toda vez que se pegava fazendo esse trajeto, pensava para si como cruzar é um verbo interessante, pois cruzar a cidade significa ir de uma ponta a outra e, não, andar em forma de cruz. Mas tudo bem, dentre as tantas coisas estranhas no mundo, porque se apegar a um fato tão banal como um verbo que aparenta uma ação que, no fim, não a faz?

Lembrava sempre de Fernando Veríssimo, que uma vez listou algumas dessas palavras, e riu sozinho. Defenestrar, lembrou, significa lançar algo pela janela, mas, se olhado de longe, não quer dizer isso. Não. Sentia como se fosse um verbo que implicasse em algo que fazia sentido, mas não se sabia o que era.

“Defenestrou as roupas do marido”, por exemplo, não passa a mínima idéia do que houve com as roupas — apesar de que dá um sentimento de que a coisa foi feia!

Já “defenestrou as roupas do marido pela janela”, apesar do pleonasmo — não intencionado — e de que ainda não se saiba bem o que foi feito com as roupas, consola-se saber que foi pela janela. Pelo menos isso!

Outra palavra interessante é “traquinagem”: Veríssimo afirma que traquinagem parece ser as peças de alguma máquina. “Precisamos trocar toda a traquinagem”, o que lhe parece bem correto.

Bom, no caminho que cruzava a cidade de norte a sul, teve que parar em um semáforo, pois estava vermelho. Ele era esse tipo de pessoa que respeita as leis do trânsito, o que tem sido cada vez mais raro, pois as pessoas começam a exagerar no bom senso e a culpá-lo.

“Posso passar o sinal vermelho porque está tarde e é perigoso ficar parado”, “posso ultrapassar aqui onde diz que é proibido porque sei que domingo não tem muito movimento no sentido contrário da pista”, “não há necessidade de ligar o pisca, pois não vêm ninguém atrás” e assim por diante. Mas o pai de Alceu era metódico e seguia às leis à risca, só para contrariar a maioria e rir disso consigo mesmo.

Viajando nos pensamentos, que eram muitos, afinal, sempre havia algo acontecendo lá dentro de sua cabeça: a maioria das vezes rindo de alguém ou de algo que só ele percebera, acabou não arrancando seu carro logo que o sinal ficou verde.

Demorou alguns minutos até perceber e, ao bem da verdade, foi ajudado pelo carro de trás, que buzinou algumas vezes e arrancou, passando por ele pela pista a sua esquerda.

Ao passar pelo pai de Alceu, o motorista do outro carro, ainda buzinando, gritou “seu animal!”, com muita raiva e expressões de ódio. É sabido que animal, babaca e corno são expressões recorrentes no trânsito e, talvez, sejam o único lugar onde ainda sejam empregados. Estes xingamentos têm sido substituídos por outros com calão muito inferior e que já estão se desgastando também, o que talvez explique o aumento da violência física.

O mais interessante é que o pai de Alceu sabia que fora xingado de “seu animal”, já que sonoricamente falando, o som era um pouco diferente, dado que o motorista era fanho. Depois deste dia, ria sempre sozinho quando lembrava do som que realmente havia ouvido: “seu anibal”.

Alguns meses depois, após o nascimento do Alceu e a morte da esposa, já junto do escrivão que iria registrar o filho, afirma, dando os primeiros passos na loucura que iria piorar ao longo dos próximos anos, que o nome do primogênito seria Seu Anibal.

O escrivão, confuso, retrucou com a maior das razões, “este nome não existe. Escolha outro.” Pois o que não esperava, — aliás, ninguém esperava —, é que ele teria uma segunda opção, menos interessante, é claro, mas nada ruim.

Confirmou, então, com um pouco de descontentamento, — mas nem tanto — que o nome do filho seria Alceu Aníbal e ainda, audaciosamente, provocou o escrivão: “ou algum desses dois não são nomes de gente?”.

Não podendo contestar o que parecia ser um péssimo gosto para nomes, aceitou e escreveu: Alceu Aníbal. Estava feito. O pai, a partir deste dia, ria intensamente por dentro e aparentava apenas um pequeno sorriso, discreto, sempre que ouvia chamarem-no pelo nome. Alceu Aníbal, não passava de um trocadilho que, através de um cacófato, eternizava sua homenagem ao “seu anibal”.