Sobre quebras de linhas em poemas Com exemplos reais
Publicado em 30/07/2020 por Gustavo Dutra
Transcrição do áudio do vídeo
Esta sessão aqui no canal, em alto mar, é onde a gente fala sobre criação poética. O tema de hoje é quebras de linhas. Julgo um tema bem interessante e que, às vezes, a gente não dá nada, mas tem muita coisa sobre o que se falar, pelo menos do ponto de vista que tenho.
Eu não tenho uma formação acadêmica em letras, literatura, nada do tipo. Porém, eu gosto de ler e escrever poemas, de investigar a poesia para poder sempre explorar novas possibilidades enquanto poeta.
Então, todo o conhecimento que estou falando para vocês aqui, não usem como referência do TCC de vocês [risos]. Mas usem, de repente, para observar no dia a dia, na produção de vocês, de forma empírica. O que pretendo é um compartilhamento de ideias, reflexões, enfim, sem pretensões.
Quebra de linha é um assunto muito legal, dá para fazer muitas coisas. Afinal de contas, quebras de linhas estão praticamente no cerne da poesia. A maioria das pessoas que falarem a diferença entre prosa e poesia vão dizer que na prosa não tem quebra de linha. E a poesia tem quebra de linha.
Até tem uma questão, que eu li em algum lugar que parece que o nome poesia viria disso, de que é uma ideia de quebra na linearidade, enquanto prosa seria uma linearidade. Então, só vai realmente quebrar a linha quando chega ao fim do parágrafo. Ponto final, quebra a linha. Quando no poema existem diversas formas, diversos motivos, para se quebrar o poema.
Quebra de linhas e métrica
Eu queria começar falando sobre a métrica, porque a métrica parece do ponto de vista de quem lê, a métrica pode parecer que a gente quebra a linha a cada x sílabas poéticas. Então chega em oito sílabas, quebra. Não é bem assim. Se pegarmos o soneto da fidelidade: “de tudo ao meu amor seria atento”, quebra linha, “antes e com tal zelo e sempre e tanto”, quebra linha, na verdade, do ponto de vista de quem escreve, nunca se trabalha com o verso, com uma palavra, com o verso dentro de um sistema métrico, porque como é português ainda, e as coisas precisam fazer sentido, tem uma expressão lógica, o versos de baixo precisa estar relacionado com de cima. E assim vai. O sentido é encadeado. Não tem como cortar simplesmente quando deu sete versos.
A princípio o sistema métrica parece simplesmente por quebrar numa determinada contagem de sílaba. Bateu, fechou, corta. Dã o enter. Mas quando na verdade é um sistema muito mais complexo para que caiba dentro da métrica.
E aí eu trouxe um monte de poemas como referências. Vou começar com o meu, porque eu acho muito interessante como, e esses versos sejam mais específicos, não vai valer para todos os versos metrificados, mas pelo menos encontrei um exemplo que acho interessante.
São quatro versos de seis sílabas poéticas:
Mergulhei no nihil E no nada nadei Afundei no vazio De nada mais sei— Gustavo Dutra
Agora, se eu simplesmente juntar o segundo verso com o primeiro e o quarto com o segundo, eu vou ter, nesse caso aqui, dois versos de doze sílabas. Antes eram 4 de 6, agora são 2 de 12.
Olha só como fica diferente a leitura do leitor, pois pro poeta ainda são as mesmas palavras. Para quem lê, a quebra de linha tem essa importância.
mergulhei no nihil e no nada nadei afundei no vazio, de nada mais sei
A forma que a gente lê é influenciada pela quebra de linha, mesmo quando existe a métrica, mesmo quando os mesmos versos são dispostos de forma diferente. Então esse é um um dos pontos. E aí tem uma frase muito boa do músico Claude Debussy , que foi um músico, compositor, e que fala o seguinte:
A música é o silêncio entre as notas. — Claude Debussy
Eu acho que exatamente, o poema, a quebra de linha, ela traz essa ideia de o silêncio, a quebra de linha de ajuda na musicalidade do poema, no ritmo do poema. E aí eu queria trazer para vocês também uma outra forma de quebrar versos. Vejam que eu tenho versos nesse caso aqui. Versos que são completos. “Mergulhei no nihil” é uma frase praticamente.
Existe o sujeito que é o culto, que é o eu, verbo e o objeto. O objeto é um complemento, mas ele é um complemento que se basta também. Então eu no nada nadei. Então, sujeito + verbo + objeto. Afundei no vazio: sujeito + verbo + objeto. E assim por adiante.
Enjambment como apreensão
Porém isso nem sempre acontece. Às vezes a quebra de linha não respeita essa parte sintática ou semântica da língua portuguesa. Aí é chamado de enjambment, que é a técnica de quebrar o verso dando a ideia de que a frase ficou pela metade. Para mim, a melhor, a melhor forma de identificar quando senti internamente o espírito fica ansioso, como se o verso estivesse pedindo alguma coisa que não vem.
Eu vou pegar um trecho do poema do Bukowski chamado Pássaro Azul . Esse poema se chama o pássaro azul:
há um pássaro azul em meu peito que [momento de ansiedade] quer sair, mas sou duro demais com ele, eu digo, fica aí, não deixarei [momento de ansiedade] que ninguém o veja
Se tivéssemos “há um pássaro azul em meu peito que quer sair” não geraria a sensação de ansiedade. Isso acontece várias vezes durante o poema. Então essa quebra de linha, ela traz uma certa sensação de apreensão.
Efeito de fragmentação
Um outro exemplo seria de Augusto dos Anjos. Acontece a mesma coisa, mesmo em sonetos, metrificada. Então, por exemplo, na Psicologia de um vencido, tem-se na primeira quadra o seguinte:
Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênese da infância, A influência má dos signos do zodíaco.
Ou seja, todos os versos se satisfazem entre si, então, não gera essa apreensão. Agora, no poema a dança da psique, a primeira quadra seguinte:
A dança dos encéfalos acesos Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços As cabeças, as mãos, os pés e os braços Tombaram, cedendo à ação de ignotos pesos!
Viu como ele dá um tom de fragmentado? Ele passa a sensação de fragmentação, e ao mesmo tempo que passa essa sensação fragmentada e ele também está falando: a carne é fogo, a alma arde, a espaços, as cabeças, as mãos, os preços, ele está falando de coisas fragmentadas; mas depois ele continua assim:
É então que a vaga dos instintos presos — Mãe da esterilidade e cansaços — Atira os pensamentos mais diversos Contra os ossos cranianos indefesos.
Olha como os versos depois não tem mais essa quebra e com essa queda parece ter sido utilizada de propósito para falar das de fragmentação do próprio texto, que o próprio texto escreve. Escreve de uma forma através do ritmo, então o ritmo descreve os fragmentos, sobre quais este texto está falando. É massa isso, né? Parece que se encaixa muito bem nessa ideia da psique fragmentada que nós temos.
Quebra de expectativa sintática e semântica
Um outro uso muito legal de quebra de linha é também um uso de quebra de expectativa. E aí, para trazer alguns exemplos, eu vou usar Romã , da Julia de Carvalho Hansen . Mais para o final, ela tem a seguinte quadra, são quatro versos:
Os ritos do encantamento e da maravilha estudei e delirei, previ e até movi montanhas para te fazer de meu alimentem na boca as manias da beleza.
Então olha que interessante, “os ritos do encantamento e da maravilha” está aí como um grande sujeito da frase. Estudei e delirei. Se eu estudei os ritos de encantamento, então, não é mais o sujeito, passa a ser objeto da frase.
Então o estudo, logo que tu quebra a linha, faz com que se inverta. O que eu achava que seria sujeito, passa a ser objeto direto. Por mias que não seja consciente, existe esse movimento dentro da nossa cabeça. E isso quebra a nossa expectativa. Previ e até movi. E aí a gente pensa, movi o quê? Montanhas pra te fazer de meu. Só que o mover não é necessariamente mover fisicamente.
Mover montanhas é uma figura de linguagem para dizer que fez muita coisa. E aí que entra a grande beleza, porque está sempre quebrando a expectativa. Até porque, assim, quando ela termina o verso, “para te fazer de meu”, o outro verso, “alimentei na boca as manias da beleza”, não está relacionada sintaticamente com os três anos anteriores. Mas dentro do poema ele está lá.
Como não tem pontuação, só uma vírgula, fica difícil de saber onde as coisas entram. Então realmente funciona muito bem como quebra de expectativa.
E aqui um outro outro exemplo do poema Exílio, a última parte de assim:
Isto desde o começo é só para contar que na esquina em que nos despedimos, alvoroço e delírio, um casal tão mais jovem que eu mais jovem de você então nem se fala o quanto se beijavam com a língua da ênfase
Então, como não tem separação de virgula, então, onde está entonação? Porque como não há vírgula e tem um monte de quebra de linha para te enganar, não dá para saber com exatidão, o que gera vários sentidos e várias possibilidades de interpretação.
Composição sonora das palavras
Explorando essa multiplicidade de sentidos e possibilidades, quem faz muito bem isso é Tatiana Nascimento, em Lundu. Ela faz o uso muito legal das quebras de linhas.
Diz/faço qualquer trabalho y meu amor de volta todo dia
Aqui ela usa, além da quebra de linha, a barra. Então ela explora uma pluralidade de sentidos baseados no sim, não na semântica, como é o caso da Júlio de Carvalho.
Então diz/faço cria uma outra palavra e aí depois ela segue com outros exemplos.
retenção no complexo de contenção quizila quebrando com tensão
Então ela começa o verso com “contenção”, do verbo conter, e terminou o verso com a palavra “com”. Só que palavra de baixo, do verso seguinte, é “tensão”. Sonoramente, “com tensão” e “contensão” são iguais. Olha que legal. Parece que “quizila quebrando” que fica contido dentro de contenção e com atenção.
E o poema segue:
com pleição cor: tição
E assim vai o poema, explorando sons similares e encontrando palavras a partir da quebra de linha.
Recapitulação e Finalização
Passamos por Bukowski, trazendo uma sensação de apreensão ou ansiedade, de querer saber o que vem a seguir. Vimos também Augusto dos Anjos, ou seja, a métrica também pode se aproveitar da quebra de linha.
Vimos a Julia de Carvalho Hansen dando vários significados semânticos e sintáticos para cada palavra ou verso, dada a quebra de linha. E vimos a exploração sonora e Tatiana Nascimento, que usou a quebra de linha para mostrar como duas palavras diferentes podem dar som de outras palavras terceiras, aglutinando sons.
Acho o assunto muito interessante. Esse foi o vídeo de reflexão, mas acredito que possa dar ideias para vocês utilizarem nos poemas de vocês, ou como ponto de observação, enquanto leitores de poesia. É sempre legal observar esse tipo de coisa.
E eu acho que é isso.
No mais, um abraço que até a próxima.