Psicologia da composição João Cabral de Melo Neto
Publicado em 16/04/2017 por Gustavo Dutra
Saio de meu poema como quem lava as mãos. Algumas conchas tornaram-se, que o sol da atenção cristalizou; alguma palavra que desabrochei, como a um pássaro. Talvez alguma concha dessas (ou pássaro) lembre, côncava, o corpo do gesto extinto que o ar já preencheu; talvez, como a camisa vazia, que despi. Esta folha branca me proscreve o sonho, me incita ao verso nítido e preciso. Eu me refugio nesta praia pura onde nada existe em que a noite pouse. Como não há noite cessa toda fonte; como não há fonte cessa toda fuga; como não há fuga nada lembra o fluir de meu tempo, ao vento que nele sopra o tempo. Neste papel pode teu sal virar cinza; pode o limão virar pedra; o sol da pele, o trigo do corpo virar cinza. (Teme, por isso, a jovem manhã sobre as flores da véspera.) Neste papel logo fenecem as roxas, mornas flores morais; todas as fluidas flores da pressa; todas as úmidas flores do sonho. (Espera, por isso, que a jovem manhã te venha revelar as flores da véspera.) O poema, com seus cavalos, quer explodir teu tempo claro; rompendo seu branco fio, seu cimento mudo e fresco. (O descuido ficara aberto de par em par; um sonho passou, deixando fiapos, logo árvores instantâneas coagulando a preguiça.) Vivo com certas palavras, abelhas domésticas. Do dia aberto (branco guarda-sol) esses lúcidos fusos retiram o fio de mel (do dia que abriu também como flor) que na noite (poço onde vai tombar a aérea flor) persistirá: louro sabor, e ácido contra o açúcar do podre. Não a forma encontrada como uma concha, perdida nos frouxos areais como cabelos; não a forma obtida em lance santo ou raro, tiro nas lebres de vidro do invisível; mas a forma atingida como a ponta do novelo que a atenção, lenta, desenrola, aranha; como o mais extremo desse fio frágil, que se rompe ao peso, sempre, das mãos É mineral o papel onde escrever o verso; o verso que é possível não fazer. São minerais as flores e as plantas, as frutas, os bichos quando em estado de palavra. É mineral a linha do horizonte, nossos nomes, essas coisas feitas de palavras. É mineral, por fim, qualquer livro: que é mineral a palavra escrita, a fria natureza da palavra escrita. Cultivar o deserto como um pomar às avessas. (A árvore destila a terra, gota a gota; a terra completa caiu, fruto! Enquanto na ordem de outro pomar a atenção destila palavras maduras.) Cultivar o deserto como um pomar às avessas: então, nada mais destila; evapora; onde foi maçã resta uma fome; onde foi palavra (potros ou touros contidos) resta a severa forma do vazio.— João Cabral de Melo Neto