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Sacrifiquem os Véios, não os Velhos — em favor da taxação de grandes fortunas

Publicado em 03/04/2020 por

A demora na resposta do governo brasileiro à crise gerada pela pandemia do COVID-19 nos custará caro. Com mais sorte do que juízo, outros políticos se opuseram e se posicionaram para defender os brasileiros, ainda que a motivação possa ser mais de cunho político do que humanitário.

Depois da sanção da Renda Básica Emergencial, temos que continuar pressionando o governo por outras medidas. Como a taxação de grandes fortunas já tramita no Senado, decidi escrever sobre ela, que pode gerar recursos importantes lá na frente.

Atualmente, vivemos mais um polarização, alimentada principalmente pelos atos criminosos do presidente — e outras figuras públicas —, quando convoca a população a sair na rua, para trabalhar, dizendo que a “economia não pode parar”.

Essa dificuldade em aceitar que vivemos um momento de crise difundiu o termo isolamento vertical, nome dado à política que visa isolar apenas o grupo com maior índice de mortalidade, os idosos.

Quem também defende, ou ao menos concorda, esta política, apesar de já ter sido montada ineficaz em outros países e de não ser recomendada pela OMS, são os véios: véio da Havan, Véio do Madero, Véio Aprendiz e inúmeros outros “véios”, como as redes sociais vêm chamando. Estes, descaradamente, colocam a economia acima das vidas dos brasileiros.

Os apoiadores dessa modalidade de isolamento são tão engajados, que há, dentre eles, aqueles que utilizam até o verbo “sacrificar”. Sim, algumas vidas devem ser sacrificadas a fim de que a economia não colapse.

Quantas pessoas ou animais já não foram sacrificados ao longo destes milênios? Sacrifícios em favor da boa colheita, em favor da chuva, sacrifícios em pagamento de dívida com deuses, oferendas, para que os bons frutos continuassem a ser recebidos?

Pois, ainda que não seja rotulado como religião, à busca pelo acúmulo de capital parece tão cega e incondicional quanto a fé em um deus deve ser. Sacrificar-se não é matar-se. Não há nenhum glamour na morte, enquanto no sacrifício, que sempre se dará em prol de outros, soa grandioso, como um mártir.

O problema é que quem exige os sacrifícios são aqueles que irão desfrutar da generosidade do deus capitalista, enquanto os sacrificados pertencem à outro grupo (tipo os tributos dos Jogos Vorazes).

É inegável que ambos grupos se enxergam excludentes. O rico sabe que é rico e que o sacrifício o traria benefícios. O pobre sabe que é pobre e que seria sacrificado. Quem seria, então, o ignorante da história? Quem é o alienado incapaz de perceber que está sendo enganado?

Ora, a classe média. Além de ser uma a maior responsável pela criação da entidade “véio”, prolifera seu discurso porque se enxerga muito mais no rico do que no pobre, ainda que seu patrimônio seja muito mais próximo ao do pobre do que do rico.

O Véio do Madero, em 2018, por exemplo, vendeu 22% da empresa por R$700 milhões. Para 2020, o Véio do Madero planejava um IPO de R$ 3 bilhões na Bolsa de Nova York. Dá para entender a dificuldade em aceitar que estamos vivendo uma crise. É muito dinheiro deixado na mesa.

É bizarro pensar o quanto dinheiro está envolvido; mais bizarro ainda é pensar que, quando se fala de taxação de grandes fortunas, a classe média acha que está perdendo, como se estivesse tirando dela, que trabalha, que conquistou com seus méritos — por ora, não entrarei na discussão de privilégios.

Veja bem: se você tiver R$ 2 milhões investidos, uma casa estimada em R$ 1,5 milhão e um carro de R$ 200 mil, ainda está mais próximo de R$ 0 do que de R$ 3 bilhões, ou até mesmo de R$ 100 milhões (valor retirado dos R$700 milhões para dividir entre os sócios).

Se você luta para conquistar aquele primeiro um milhão igual a Bettina, saiba que, em 2016, este valor foi gasto apenas de IPTU pela família Safra. E isto que a classe média precisa entender.

Eu trabalho no mercado de TI, onde a mão de obra é muito valorizada. Nesta indústria, apesar de que haja disparidade dependendo do cargo, desenvolvedores plenos possuem, em geral, um salário em torno de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) em São Paulo. Segundo os dados do Nexo, é maior do que a de 95% dos brasileiros. Cargos Seniores começam com R$ 9.000,00 (nove mil reais) mensais. Isso quer dizer que estes trabalhadores estão no Top 2% dos maiores salários do Brasil. Não parece, mas isto não te torna realmente rico.

O que, ao meu ver, acontece é que a classe média, ao passar a receber salários altos, entre R$10 e 30mil, é capaz de ter um estilo de vida ou um modelo de consumo muito parecido com os mais ricos, e isso distancia as pessoas da realidade.

Pagar R$ 300 reais em um almoço não é impossível para quem ganha R$ 20 mil reais por mês; assim como comprar um carro de R$ 200mil ou um apartamento de R$700mil. Basta financiar. Vai pagando na manha. E assim o indivíduo se compara com o outro, que ganha 3x mais e que, provavelmente, parcelou em menos vezes ou até mesmo pagou à vista para negociar descontos.

A viagem pra Disney, como falou Guedes, pode ser parcelada também. A classe média pode tirar fotos de seu iPhone nos mesmos lugares e até mesmo frequentando os mesmos hotéis e resorts. É um privilégio da classe média; mais um, que não é visto como tal, porque sua bolha é composta de pessoas da mesma classe, ou seja, têm a impressão de que todos competem de igual para igual. Mas isso é apenas uma cegueira — muito conveniente, diga-se de passagem — em relação aos 95% da população.

Portanto, se você, como eu, é da classe média e, acredito, tenha um patrimônio líquido menor que R$ 22,8 milhões de reais, não tem porque não ser a favor da taxação das grandes fortunas. Minha sugestão é que, ao invés de sacrificar nossos idosos (a quem chamei de velhos apenas para fazer um trocadilho no título), sacrifiquemos os “véios” — ou a classe que eles representam. Assim, junto no isolamento horizontal, ao invés de sacrificar vidas para o deus capital, vamos “sacrificar” de 0,5 a 1% das fortunas em prol das vidas que podem ser salvas durante a pandemia.


Gostaria de agradecer a revisão do meu amigo @noteu e deixar alguns links complementares que ele elencou:

  • Madero demitiu 600 funcionários. Essa análise do Maurício Ricardo é interessante.
  • Nesta thread, algumas reflexões acerca do “medo” da ascensão dos mais pobres —possível origem dessa coisa de sacrifício, na minha opinião—, pois isso afeta diretamente o neoliberalismo. Um comentário aponta para a entrevista do cara que cunhou o conceito de necropolítica.
  • E, para ter uma noção de proporções de fortunas, este post mostra um vídeo do Tiktok onde um usuário compara, com grãos de arroz, cem mil, um milhão e um bilhão de dinheiros. É muito arroz, cara.